Um mundo melhor é possível
Educação inclusiva, uma revolução a caminho

Escolas se adaptam e recebem crianças com comprometimento orgânico, que antes só tinham direito às classes especiais.

A educação inclusiva deixou de ser um projeto para entrar nas salas de aula das escolas comuns de ensino regular. Este conceito ganhou forma em 1994 com a Declaração de Salamanca, Espanha, que analisou as mudanças fundamentais de políticas necessárias para favorecer o enfoque da educação integradora, capacitando as escolas no atendimento a todas as crianças, sobretudo as que têm necessidades educativas especiais. O documento da Unesco foi inspirado na idéia de integração e no reconhecimento da necessidade de ação para conseguir escolas para todos, no reconhecimento das diferenças, na promoção da aprendizagem e no atendimento às necessidades de cada um com vistas à universalização do ensino e à eficácia educativa. Mais de 90 países, entre eles o Brasil, assinaram a Declaração de Salamanca e seus princípios estão sendo adotados por algumas administrações públicas, como a da cidade de São Paulo.

Adriana Marcondes, psicóloga do Serviço de Psicologia Escolar do Instituto de Psicologia da USP, revela que as Sub-prefeituras da capital estão se instrumentalizando para atender as demandas que a prática inclusiva exige. "A inclusão escolar produz necessidades que só podem ser atendidas por uma rede de apoio", diz. "Quando uma criança com comprometimento orgânico é matriculada, a Sub-prefeitura reúne as coordenadorias de educação, saúde e cultura da região para discutir como adequar a escola e o coletivo frente a este aluno", esclarece ela. Segundo Adriana Marcondes, a Coordenadoria do Patrimônio da Prefeitura é, então, acionada para providenciar condições materiais e estrutura física que atendam as mudanças, seja na construção de rampas de acesso ou de uma escrivaninha de estudos adaptada às condições da criança.

Ao mesmo tempo, são realizadas reuniões de professores que se dedicam a trabalhar o planejamento pedagógico. Adriana Marcondes conta que é nesse momento que entra o psicólogo da área de educação, que, junto ao corpo docente, estabelece estratégias para equacionar situações novas de naturezas diversas.

Para Maria Teresa Mantoan, professora dos cursos de graduação e de pós-graduação da Faculdade de Educação da Unicamp/SP e coordenadora de um grupo de pesquisa da Universidade, o Laboratório de Estudos e Pesquisa em Ensino e Diversidade - LEPED, o acesso, a permanência e o prosseguimento à escola é um direito de todos os alunos com e sem deficiência. Na Constituição de 1969, os alunos com deficiência eram sujeitos da Educação Especial. Os avanços da Constituição de 1988 asseguram a esses alunos o direito de freqüentar as escolas comuns, especialmente no Ensino Fundamental, quando a escolarização é obrigatória. "A educação especial, sendo uma modalidade", complementa, "não pode substitui os níveis de ensino, em classes especiais de escolas comuns, ou em escolas especiais de instituições governamentais e não governamentais".

Esse fato já demonstraria por si só o caráter inclusivo da educação, segundo ela. Para a professora Mantoan, para que a inclusão deixe de ser uma intenção e se concretize é preciso mudar as escolas, que ainda reagem às diferenças dos alunos com medidas excludentes, admitindo em suas turmas alunos, classificados por desempenho acadêmico, sujeitando-os a avaliações de caráter meramente classificatório e a uma organização curricular que elege a instrução, por meio de um ensino transmissivo, meritocrático, elitista, que segrega e/ou exclui os que não correspondem ao ideal do escolar em programas compensatórios, como os "reforços, acelerações, turmas especiais e de adaptação".

Trabalhando há mais de 10 anos em sistemas de ensino paulista e de outros estados, ela coordena os projetos escolares que "viraram a escola do avesso", reorganizando-os pedagogicamente, de modo que pudessem atender às diferenças. Na opinião da professora Mantoan, os professores resistem à inclusão porque é impossível conciliar o discurso inclusivo das redes de ensino com as velhas práticas de ensino. Ela diz que há de existir coerência conceitual, de princípios, competência e vontade para que a inclusão aconteça plenamente, pois até então, grande parte das iniciativas que se dizem inclusivas não atendem aos requisitos dessa inovação educacional.

O que existe, no geral, na constatação da professora Mantoan, são escolas que desenvolvem projetos de inserção parcial, que não estão associados à transformações de base e que restringem os seus excluídos aos alunos com deficiência.

O Ministério Público tem assumido papel importante na conscientização de prefeitos, escolas especiais públicas e filantrópicas, secretários de educação e conselhos de educação. "Alguns procuradores e promotores estão se empenhando muito, no sentido de esclarecer os pais de alunos excluídos, com e sem deficiência, sobre a importância de todas as crianças estudarem em uma escola única, em que as gerações aprendam a reconhecer e valorizar as diferenças, desde as primeiras experiências educacionais. O MP está participando conosco da luta em favor da observância do direito de ser, sendo diferente, nas escolas", concluiu a profa. Mantoan.

Adriana Marcondes é igualmente incisiva ao condenar a individualização da questão. Ela reinventa o conceito de "direitos para todos" e diz que na educação inclusiva este princípio deveria receber outro tratamento: "direitos para qualquer um". Para ela, não adianta universalizar a cidadania se não se criam ferramentas para exercê-la. "Qualquer criança tem que aprender no espaço escolar", afirma.

Marcondes reconhece que a educação inclusiva é um território com grande potencial para produzir fracassos. "É onde se costumam tratar as diferenças como questões individuais", ressalta. "Como a cegueira consegue atravessar o território escolar?", questiona ela. "Transformando a escola onde se caiba a cegueira", esclarece. "Devemos devolver ao coletivo o que não é individual, adotando práticas, currículos escolares, estrutura física, sistema de avaliação, horário de recreio que comportem todas as crianças", acrescenta.

Para ela, passou da hora de o coletivo aprender a compartilhar seu espaço com a cegueira e outras limitações sejam de ordem física, mental, social ou cultural. Adriana Marcondes acredita que a educação inclusiva só vai ter sucesso se se partir da idéia de que fazemos parte de um mesmo grupo onde não se ressaltam as particularidades, a começar por conceitos com conotações individualistas. "Criança tem que ser chamada de criança, não de portadora de deficiência, portadora de necessidades educativas especiais ou de criança inclusiva", adverte.

Ela explica que a convivência no coletivo de uma criança com comprometimento orgânico não é só socialmente justo. Há o aspecto pedagógico. A interação fora do ambiente familiar traz muitos benefícios no aprendizado dessas crianças. "Elas passam a ser valorizadas culturalmente pela sociedade e pela escola", afirma. Adriana Marcondes assegura que a educação inclusiva tem o papel de tornar a vida destas crianças melhor. "A coisa mais gostosa é quando os amigos vêm, fazem bagunça, colocam-na num lugar importante, o que para a família, porque a superprotege, é difícil", conclui.

"Devemos devolver ao coletivo o que não é individual, adotando práticas, currículos escolares, estrutura física, sistema de avaliação, horário de recreio que comportem todas as crianças"

Adriana Marcondes



CFP lança campanha pela educação inclusiva em 2004

O tema da campanha que o Conselho Federal de Psicologia vai lançar em 2004 é "Educação Inclusiva, os Direitos na Escola". A campanha é nacional e todas as Comissões de Direitos Humanos dos Conselhos Regionais estão discutindo o tema. Dentro do contexto da campanha, será debatido o lema "Por uma Escola Mundo, onde Caibam Todos os Mundos". Maria da Graça Marchina Gonçalves, coordenadora da Comissão de DH da Regional de São Paulo, diz que a temática foi escolhida, porque é uma área sobre a qual os psicólogos têm muito a dizer. "Queremos que a campanha chame a atenção para a necessidade de se trabalhar o respeito à diversidade e também para a necessidade de que a escola se modifique para incluir a diversidade", explica.

Mas observa que a psicologia, ao ter valorizado as diferenças, pode ter trabalho pela exclusão. "Precisamos fazer uma reflexão do que produzimos na nossa história dentro dessa área e verificar qual o direcionamento que estamos tomando", sugere. "Queremos discutir a educação inclusiva que está na lei e nos projetos de políticas educacionais do país", acrescenta.

A campanha está sendo divulgada (no dia 22 de novembro foi realizado um debate no CRP-SP) e serão organizadas programações regionais, assim como foi com a campanha do preconceito racial. "A gente pretende fazer uma série de debates, na linha da discussão do preconceito, e levantar informações sobre a verdadeira realidade da educação inclusiva, de como estão se desenvolvendo os projetos", diz Maria da Graça. Ela adianta que não se tem uma noção clara de como está a educação inclusiva no país. "Há algumas estatísticas que mostram que boa parte da população, aquela que precisa de um atendimento especial, está excluída da escola", revela. Ela diz que esta parcela da sociedade não tem acesso à escola e quando tem é para as chamadas "classes especiais". "Uma dupla exclusão. Ou pelo não-acesso ou pelo acesso que acaba por não incluir", condena.

Ela explica que a campanha se propõe a apropriar-se dessas informações, mapear esta realidade, fazer um diagnóstico da situação e colocá-la à disposição de pesquisas da psicologia para propor soluções para a inclusão na educação.