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Considerações sobre a Ética do Gancho

Nélio P. da Silva(1)

Meses atrás surgiu na mídia uma noticia no mínimo curiosa. Anunciava-se um concurso de beleza de freiras. Evidentemente as religiosas não desfilariam de biquíni, mas se apresentariam com o hábito de sua congregação e receberiam votos via internet. Não demorou muito outra notícia: O padre “moderninho” idealizador do referido concurso foi chamado às falas por autoridades do Vaticano e o projeto do concurso de beleza das religiosas morreu na casca. A curiosidade e a estranheza desse projeto se casam perfeitamente com o dito romano, segundo o qual não basta à mulher de César ser séria, ela precisava também parecer séria. A mentalidade leiga é povoada por um conjunto vastíssimo de expectativas a respeito da postura e do comportamento do psicólogo. Qualquer deslize, qualquer atitude esdrúxula, qualquer posicionamento estranho, qualquer manifestação mais espontânea, qualquer modalidade de fraqueza cairá no jargão fatal: Como é que um psicólogo pode fazer isso?

1. Psicólogo, professor da Universidade Tuiuti do Paraná.

Estamos em pleno campo das projeções. Sucede que as profissões de saúde, em geral, e entre elas a nossa, são objeto de expectativas e projeções carregadas de uma aura de dedicação sacerdotal que se materializa na resposta do estudante de Psicologia a quem perguntamos por que buscou a Psicologia. A resposta quase sempre será: Porque desejo ajudar os outros; assim, é inadmissível que tal profissional cometa deslizes incompatíveis com a “santidade” de tal tarefa salvadora.
É certo que as projeções criam uma série de relações imaginárias que muitas vezes pouco ou nada tem a ver com a realidade objetiva do mundo exterior. Desse modo nos sentimos até injustiçados quando vemos que o mundo espera de nós posturas ilibadas, vergastando impiedosamente nosso direito humano de possuir mazelas. Mas será que somos tão inocentes diante dessas impiedosas expectativas?

Jung considera que a pessoa sobre a qual se dá a projeção pode, de modo inconsciente, encorajar as projeções que recebe:
“Acontece frequentemente que o objeto oferece um gancho para a projeção e até a seduz. É isso, geralmente, o que acontece quando o próprio objeto (homem ou mulher) não está consciente da qualidade em questão: assim, age diretamente sobre o inconsciente do projetante. Pois, todas as projeções provocam contraprojeções, quando o objeto é inconsciente da qualidade projetada sobre ele pelo sujeito (JUNG,1981)”.

As projeções relativas ao papel de curador, são verdadeiras tentações que rondam nosso papel de psicoterapeuta. A perspectiva de produzir técnicas e táticas terapeuticamente mágicas, tão ao gosto dos Segredos da vida, seduz não poucos terapeutas psicólogos que, ao se apropriar de procedimentos absolutamente alheios ao arsenal psicológico, transformam-se em verdadeiros vendilhões do templo.

A sabedoria popular costuma sinalizar o gancho com o provérbio”:
“Onde há fumaça, há fogo”. Assim a boataria mais injusta, e por isso, mais rejeitada, tende a ser totalmente desconsiderada e portanto perde a possibilidade de denunciar ganchos preciosos.

É fundamental, para a consciência ética do psicoterapeuta, saber que atrás da disposição do papel de ajuda, situa-se a visível relação de poder. Esse poder, sem grandes problemas poderia provar a todos a necessidade permanente de que todo mundo devesse se submeter a longa e profunda análise. A dimensão desse poder pode chegar a tal ponto que aqueles que nunca passaram por tal processo podem se sentir menos sãos ou pelo menos com seu desenvolvimento psicológico comprometido.

Aqui se descortina um campo muito propício ao surgimento de dois perigos que rondam a papel do terapeuta: o charlatão e o falso profeta. Os dois talvez até consigam impressionar pela aura de poder e pela persona empática do papel assumido. Enganarão alguns, por algum tempo. Mas não o farão com todos e o tempo todo.
Guggenbihl-Craig referindo-se à figura do charlatão escreve:

Esse termo, para mim não designa alguém que usa métodos
não ortodoxos ou extraoficiais para ajudar os necessitados,
mas sim um tipo de terapeuta que na melhor das hipóteses engana
tanto a si como a seus pacientes, ou na pior, apenas a seus pacientes.
(...)
Trata-se de um individuo que ajuda mais a si mesmo, pelo dinheiro e
pelo prestígio que recebe,
do que aos doentes que procuram seus préstimos (2004).

Esses papéis confusos podem nos acompanhar pelo simples fato de que nós, analistas, assim como as demais pessoas, carregamos nossos pontos cegos. Nossos amigos e nossos pacientes também não veem, produzindo uma verdadeira folie à deux. Lembra Guggenbihl-Craig que, em tais situações, nossos inimigos nos podem ser muito úteis e deveríamos sempre refletir sobre o que eles dizem.

Nós, que pretendemos ajudar a humanidade, na ampliação do campo da consciência, precisamos ter consciência de que o lidar com a desgraça, o desajuste, a ignorância e a doença constelam em nós próprios graves problemas psicológicos. Já poderíamos festejar um avanço considerável se conseguíssemos ver a doença não apenas em nossos pacientes. A falta de humildade, em admitir tais mazelas, pode nos configurar simplesmente como figuras trágicas.

Nossos primeiros mestres, no confronto com os aspectos sombrios de nosso inconsciente, Freud e Jung, vivenciaram de modo heróico e pioneiro essa descida dolorosa às sombras do Hades.

O significado da presente reflexão é a discussão da propriedade ou impropriedade desse amontoado de expectativas piedosas a respeito de nossa postura e de nossa conduta, em geral, como psicólogos. Será que temos alguma responsabilidade diante delas? Nossos colegas que já trabalharam em comissões de ética, ou os conselheiros que já participaram de processos e de julgamentos éticos, têm muito a nos dizer sobre o tema.

Por outro lado, uma olhadela em nosso Código de Ética nos põe em contato com várias dessas expectativas, evidenciando que as piedosas projeções podem ter um fundo de realidade plausível. Não é impunemente que fizemos a escolha dessa profissão. Evidentemente, há necessidade de olhar para ao tema com o devido grano salis, para não incidirmos numa postura xiita e hipócrita de caça às bruxas.

Há que se considerar, ainda, que a tradição de acolhimento e de aceitação, tão próprias de nossa profissão, não se torne uma armadilha para nossa capacidade crítica de separar o joio do trigo.
Desse modo, não é improvável que constatemos que o destino de nossa escolha profissional não esteja tão distante daquele que acompanhou a imagem da mulher de César.

Referência Bibliográfica
GAMBINI. R. O Espelho Índio. Espaço e Tempo: Rio de Janeiro 1987.
GRUGGENBUHL-CRAIG, Adolf. O Abuso do Poder na Psicoterapia. Paulus: São Paulo, 2004.
JUNG, C. G. – A Prática da Psicoterapia. Vozes: Petrópolis, 1981.
WHITMONT, E. A Busca do Símbolo. Cultrix: São Paulo, 1995.