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Psicoterapia, cientificidade e interdisciplinaridade:
a propósito de uma discussão sobre a suposta necessidade
de uma regulamentação das práticas psicológicas clínicas

Roberto Novaes de Sá(1)

Atualmente, a multiplicidade de práticas e a dispersão teórica do campo da Psicologia já não são vistas por grande parte dos psicólogos como um problema a ser solucionado, mas antes como uma particularidade própria à natureza de seu objeto de investigação e de suas práticas de intervenção. Podemos mesmo afirmar que, apesar das dificuldades inerentes a um saber tão multifacetado, esta diversidade tende a ser saudada, cada vez mais, como uma qualidade positiva e diferenciadora da psicologia. É, especialmente, no campo das práticas psicológicas clínicas, no sentido amplo deste termo, que a sensibilidade para as diferenças tem inspirado uma revisão das posturas epistemológicas e metodológicas mais tradicionais com suas aspirações de objetividade e universalidade. Para o psicólogo que trabalha no vasto campo de possibilidades das intervenções clínicas, assumir uma identidade teórica não significa necessariamente se engajar em uma militância epistemológica, mas fazer uma escolha, preferencialmente refletida, de uma perspectiva a partir da qual possa se inserir na dinâmica deste diálogo histórico, ético e transdisciplinar que se tornou a Psicologia contemporânea. Na clínica psicológica, ao contrário de outras áreas do saber científico, é exatamente o rigor na atenção à essência própria de seu objeto que exige a flexibilidade metodológica.

A psicologia clínica é dependente das concepções de homem e de natureza subjacentes à visão de mundo moderna, no interior da qual se afirma como proprietária de uma região específica. Assim, para se pensar o sentido da clínica, ao invés de tomá-la como uma aplicação técnica simplesmente dada, é necessário empreender a tarefa de desocultamento e desconstrução dos sentidos previamente dados e velados nas interseções institucionais em que ela emerge como saber teórico e prático. A desconstrução de cunho transdisciplinar, efetuada por meio de outras áreas do saber moderno, como a Historiografia, a Sociologia, a Antropologia, etc., deve ser complementada por um questionamento filosófico que ponha em jogo o próprio campo de objetivação de sentido que essas disciplinas compartilham entre si.

O problema da cientificidade das psicoterapias é extremamente complexo e exige ampla perspectiva de discussão. A compreensão usual das psicoterapias como Psicologia aplicada (FIGUEIREDO, 1995), ou seja, mera aplicação técnica de uma disciplina científica, não faz justiça à história de seu desenvolvimento na época moderna e, menos ainda, ao diversificado conjunto de práticas psicoterapêuticas reconhecidas pelas instituições de saúde e seus usuários, além daquelas ainda consideradas alternativas, mas que também reivindicam o reconhecimento da comunidade profissional e científica a partir
de seus discursos de legitimação próprios. Por outro lado, mesmo com as flexibilizações e mudanças nos paradigmas contemporâneos de cientificidade, permanece a necessidade de critérios que possam estabelecer limites ao campo das psicoterapias. Os usuários, os psicoterapeutas e a sociedade em geral demandam, das instituições acadêmicas e órgãos de regulação profissional, orientação e proteção contra os abusos e usos indevidos do estatuto de legitimidade conferido pela denominação de uma prática como psicoterapêutica.

1. Professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense.

Na impossibilidade de recorrer a alguma espécie de tribunal científico e entendendo que os Conselhos Profissionais, enquanto órgãos reguladores, têm de estabelecer uma relação dialética com os consensos historicamente estabelecidos pelas categorias profissionais e seus usuários, resta-nos a sóbria alternativa de tentar equilibrar os critérios de racionalidade instrumental, preponderantes nos discursos legitimadores em nossa cultura, com os critérios de aceitação social, provenientes de práticas democráticas de interação comunicativa (HABERMAS, 1989). Nessa direção, sublinhamos a importância de uma ampla discussão da categoria dos psicólogos, na qual se possam delinear orientações gerais sobre as relações entre
psicoterapia e ciência, sobre os limites das práticas psicoterápicas no âmbito da psicologia, bem como da necessidade, ou não, de regulamentação estrita dessas práticas ou do estabelecimento de parâmetros mínimos de referência.

Uma reflexão desta natureza não pode se restringir ao plano meramente epistemológico ou legalista. É necessário ganhar antes uma perspectiva propícia ao diálogo fértil, a partir de alguma tematização sobre nossas implicações históricas e existenciais acerca dessas questões. De outro modo, corre-se o risco de reduzir a discussão ao embate cego por interesses pessoais e corporativistas. Não se trata, assim, de questionar apenas o que é científico ou não nas psicoterapias, mas de refletir sobre os sentidos históricos velados que o discurso científico adquiriu para o mundo moderno, buscando conquistar uma relação mais livre com a ciência e a técnica. Tal liberdade encontra-se igualmente distante das mitificações cientificistas e da reatividade anticientífica. Como disse Heidegger:

Encontrar a forma conveniente para que a educação do pensamento não se confunda com a erudição, nem com a pesquisa científica,é justamente a dificuldade. A gravidade se apresenta, sobretudo, na medida em que o pensamento deve sempre buscar seu lugar próprio de habitação. Pois, pensar bem em meio às ciências significa: tomar distância delas, sem, de modo algum, menosprezá-las. (HEIDEGGER, 1962, p. 256)

Foi em meio às ciências naturais que a Psicologia emergiu, no século XIX como disciplina científica, levando as “faculdades psicológicas” para o laboratório de pesquisa empírica. Este hibridismo forçado não poderia desdobrar-se em outro destino que o da proliferação de modelos e metodologias divergentes. Como nos diz Ferreira (2006, p. 36), podemos compreender a partir daí a situação singular da Psicologia, rejeitada pelos cientistas, em virtude da excessiva dispersão teórica e metodológica, e também pelos humanistas, devido ao naturalismo objetivante.

Constata-se no heterogêneo campo das Práticas Psicológicas contemporâneas, paralelamente à revitalização dos projetos cientificistas, biologizantes e fisicalistas, uma tendência crítica que tende a deslocar a questão metafísica sobre “o que é” o homem, qual a sua quididade, o seu ser em-si, para a questão sobre o sentido do seu ser. Com essa migração do plano metafísico para o de uma hermenêutica que se sabe irremediavelmente histórica, a Psicologia se define menos a partir de formulações técnico-científicas e se afirma como região transdisciplinar de construção de saber, envolvendo as dimensões ontológicas, estéticas, éticas e políticas da existência humana enquanto produção histórica de subjetividades, abertura espaço-temporal de sentido.

Esse deslocamento, presente desde o nascimento da clínica psicológica, foi delineando de modo cada vez mais claro a especificidade do modelo clínico da Psicologia com relação aos modelos de outras áreas da saúde, que embora se dirijam igualmente ao sujeito humano, trabalham com recortes objetivados da existência, pautando o empenho terapêutico prioritariamente em explicações causais e procedimentos técnico-científicos. No caso da psicoterapia desenvolvida no âmbito da Psicologia, seu caráter específico é dado por dirigir-se essencialmente à subjetividade, tendo como condição de possibilidade a subjetividade do psicoterapeuta.

Uma clínica do sujeito não se caracteriza essencialmente por representações conceituais sobre alguma suposta estrutura psíquica, sobre leis de cognição, aprendizagem ou desenvolvimento, apesar de tudo isso ser circunstancialmente útil para a psicoterapia, o que a singulariza entre as diversas práticas terapêuticas é o cuidado pela liberdade e autonomia possíveis do sujeito concreto e singular. Sob essa perspectiva, a essência da psicoterapia não se reduz ao tipo de conhecimento que pode ser sistematizado em algum método e repetido na forma de uma técnica, embora procedimentos técnicos possam e devam ser utilizados na psicoterapia. No contexto clínico, as perguntas e as respostas concernentes às questões da vida nunca estão
formuladas a priori, pois, ainda que se repitam, somente têm sentido a partir do contexto existencial concreto no qual surgem, como se fossem feitas sempre pela primeira vez (SÁ, 2002).

Esta caracterização da psicoterapia, ao mesmo tempo em que indica um limite e um espaço próprios de sentido, acolhe a diversidade de práticas que compõem o seu território no campo da Psicologia.

Assim como na emergência histórica da psicanálise a especificidade da clínica surgiu antes da metapsicologia, quanta teorização pretensamente científica foi produzida na psicologia clínica para legitimar a posteriori uma prática cujas reais motivações e pressupostos não foram devidamente tematizados nestas construções? Não se trata de negar o lugar das teorias e das técnicas científicas nas práticas psicoterapêuticas, a questão é saber se tais práticas se definem
essencialmente a partir delas. Só podemos fazer psicoterapia legitimados por uma disciplina científica ou, ao contrário, o lugar da ciência na clínica deve ser sempre regulado por uma perspectiva de cuidado psicológico?

No mundo atual, as vivências de sofrimento existencial, endereçadasà clínica psicoterápica, cada vez mais estão relacionadas ao nivelamento histórico dos sentidos, ao que se enquadra no projeto global de controle, exploração e consumo. As produções contemporâneas de novos modos de subjetividades demandam das práticas psicológicas clínicas uma permanente reflexão e rearticulação de suas estratégias. Neste contexto, para que a psicoterapia possa se constituir em um espaço de cuidado e abertura a outros modos de existir, ela não pode permanecer acriticamente subordinada a esse mesmo horizonte histórico
de redução de sentido. Se em outros campos de intervenção técnica sobre a vida, particularmente naqueles que envolvem manipulações genéticas, torna-se cada vez mais consensual que a cientificidade das práticas não pode ser o critério de legitimidade das intervenções, mas que, ao contrário, é preciso o estabelecimento de uma ética do humano, ou melhor, uma ética da vida, que regule os limites da ciência no âmbito das práticas de cuidado pela vida; no campo das psicoterapias, a questão, embora não tenha o mesmo apelo midiático, não é, por isso, essencialmente menos importante.

Qualquer teoria ou procedimento técnico-científico, com sua linguagem técnica especializada, tem como condição histórica de possibilidade uma comunidade humana fundada em uma linguagem natural e em uma experiência vivida do mundo cotidiano. Mesmo quando todo poder parece emanar naturalmente da técnica, é porque este lhe foi concedido a partir de decisões existenciais, éticas e políticas, nunca meramente técnicas, ainda mais, quando essas decisões não são assumidas de um modo próprio. Só há cidadania autêntica onde se preserva a nobre prerrogativa humana de decidir, conforme a própria responsabilidade, sobre os aspectos essenciais da existência.

Os psicólogos devem saber, melhor que ninguém, quanto suposto saber psicológico tem sido indevidamente usado para usurpar essa responsabilidade onde ela deveria ser de direito, ou para imputá-la onde ela não cabe. Quando se trata de refletir sobre a necessidade ou não de uma regulamentação do próprio campo de atuação profissional das práticas psicológicas clínicas, estamos diante de uma tarefa para a qual não há instâncias teórico-institucionais com respostas prontas. Não devemos deixar que se reproduza aqui a situação que muitas vezes lamentamos quando assistimos àqueles usos indevidos do suposto saber psicológico. Apenas uma discussão ampliada da categoria pode singularizar uma decisão que afirme nossa responsabilidade profissional, sem a qual nossa prática já está de antemão comprometida, a despeito de qualquer regulamentação bem-intencionada.

Referências
FERREIRA, Arthur A. L. O Múltiplo surgimento da Psicologia. In: História da Psicologia:
rumos e percursos. Organização Ana Maria Jacó-Vilela, Arthur A. L. Ferreira e Francisco T. Portugal. Rio de Janeiro: Nau Ed., 2006.
FIGUEIREDO, L. C. M. (1995) Revisitando as Psicologias: da Epistemologia à Ética nas práticas e discursos psicológicos. São Paulo: EDUC; Petrópolis: Vozes.
HABERMAS, Jürgen. Ciencia y técnica como ideología. Madrid: Tecnos, 1989.
HEIDEGGER, Martin. Chemins qui ne mènent nulle part. Paris: Gallimard, 1962.
SÁ, R. Novaes. A psicoterapia e a questão da técnica. In: Arquivos Brasileiros de Psicologia, vol. 54, n. 4, 2002, p. 348-362. Rio de Janeiro: Instituto de Psicologia da UFRJ/ Ed. Imago.